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O delírio coletivo das Havaianas e a chama da ignorância no Brasil

O recente episódio envolvendo as sandálias Havaianas, transformadas, da noite para o dia, em símbolo de disputa ideológica expõe com clareza perturbadora o estado de polarização extrema em que o Brasil se encontra. O que deveria ser apenas um produto popular, presente em quase todas as casas do país, virou combustível para ataques, boicotes, vídeos de ódio e performances de “vingança” digital. Uma pequena fagulha foi suficiente para incendiar uma guerra nacional. Mais uma vez.

O país parece viver um delírio coletivo permanente, no qual qualquer gesto, marca, frase ou postagem é imediatamente capturada pela lógica binária da política identitária: ou está comigo, ou é meu inimigo. A internet se consolidou como o grande ringue dessa batalha, onde esquerda e direita atuam como gladiadores modernos, lutando não por ideias, mas por humilhação, cancelamento e destruição simbólica do outro.

Nesse ambiente, a razão perdeu espaço para o impulso. A reflexão foi substituída pelo ataque, e o debate, pela torcida organizada. Não importa o fato, o contexto ou a complexidade: importa apenas vencer a narrativa do dia. O resultado é um cenário que lembra perigosamente um retorno à barbárie, em que o conflito é celebrado e a ignorância se torna virtude.

A ignorância, quando estimulada e romantizada, deixa de ser apenas ausência de conhecimento e passa a ser um instrumento de poder. Ela simplifica o mundo, transforma problemas complexos em slogans e legitima atitudes extremas. Pessoas queimam produtos que compraram com o próprio dinheiro, destroem bens, rompem relações e se colocam em risco apenas para “ferir” simbolicamente o lado oposto. É uma vingança vazia, que não produz justiça, apenas mais ressentimento.

O mais alarmante é que esse comportamento não surge do nada. Ele é alimentado diariamente por discursos que incentivam o ódio, por algoritmos que premiam a indignação e por líderes políticos, religiosos ou digitais que lucram com o caos. A polarização não é apenas um efeito colateral: ela se tornou um projeto. Um projeto que depende da desumanização constante do outro para sobreviver.

Quando tudo vira guerra, nada mais é sagrado: nem a convivência social, nem a economia, nem a própria democracia. A lógica do “nós contra eles” corrói o tecido social, impede consensos mínimos e normaliza a violência simbólica que, não raro, transborda para a violência real.

O “caso Havaianas” não é sobre sandálias. É sobre um país exausto, emocionalmente manipulado e intelectualmente empobrecido, que reage mais do que pensa. É o retrato de uma sociedade em que a ignorância se espalha como fogo em capim seco, impulsionada pela raiva e pela necessidade constante de pertencimento a um lado.

Romper esse ciclo exige coragem. Coragem para duvidar das próprias certezas, para ouvir sem atacar, para discordar sem destruir. Exige também responsabilidade individual e coletiva no uso da palavra, especialmente nas redes sociais. Caso contrário, continuaremos a confundir engajamento com inteligência, barulho com verdade e ódio com identidade.

Se não apagarmos essa chama agora, o risco não é apenas mais um delírio coletivo. É a normalização do caos. E a história já mostrou, mais de uma vez, onde esse caminho termina.