Regras atuais expõem pessoas da comunidade LGBTQIA+ a situações vexatórias ao priorizar o nome de registro civil e o sexo biológico na carteira de identidade e sistemas governamentais.
O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação, com pedido de tutela de urgência, nesta sexta-feira (26), para que a União unifique o campo “nome” – sem distinção entre o nome social e o nome de registro civil –, e exclua o campo “sexo” nos cadastros da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Os dados cadastrais são alimentados pelo Serviço de Identificação do Cidadão, sistema administrado pelo Governo Federal, a partir de decreto editado em novembro de 2023. Regras atuais desrespeitam o direito ao nome social das pessoas transexuais e geram constrangimentos a integrantes da comunidade LGBTQIA+ ao priorizar o nome de registro civil e o sexo biológico na carteira de identidade e sistemas governamentais.
De acordo com a ação, o modelo cadastral promovido pela Administração Pública Federal no novo modelo da Carteira de Identidade Nacional (CIN) e em seus sistemas contém elementos transfóbicos que afrontam o direito à identidade de gênero autopercebida da população trans. Sistemas como Gov.br, Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), ConecteSUS (Meu SUS Digital) e Cadastro Nacional de Usuários do Sistema Único de Saúde (CadSUS Web) estão incluídos entre os sistemas federais que ainda não contemplam a possibilidade de utilização de nome social.
O procurador regional dos Direitos do Cidadão no Acre, Lucas Costa Almeida Dias, que assina a ação, defende que o “desrespeito ao nome escolhido pelas pessoas trans e os entraves encontrados para fazer valer esse direito contribuem para o processo de invisibilização, além de refletir não só no meio social, mas também no adoecimento psíquico”. Agravada por fatores como a discriminação social, a população trans apresenta indicadores preocupantes, como alto índice de evasão escolar e desemprego, além de possuir expectativa de vida de 35 anos, em razão da enorme taxa de suicídios e de mortes violentas: apenas em 2022, houve 20 casos de suicídio e uma média de 11 assassinatos de pessoas trans por mês.
Lucas Dias destaca que o direito à autodeterminação de gênero e orientação sexual já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), Supremo Tribunal de Justiça (STJ), órgãos internacionais como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos e pelo próprio Governo Federal. Além disso, o Governo anunciou publicamente que os documentos seriam alterados, após longo processo de debate com organizações que defendem direitos LGBTQIA+, mas o Decreto não incorporou essas mudanças. Desse modo, houve quebra do princípio da confiança pela Administração Pública.
Na ação, o MPF pede que o Governo Federal crie mecanismos cooperativos para que os demais órgãos públicos que utilizam os dados do CadÚnico e dos cadastros federais importem os marcadores “nome social”, “orientação sexual” e “identidade de gênero” para adequar formulários, sistemas registrais e bancos de dados sobre pessoas em situação de vulnerabilidade social. O objetivo é que o Governo inclua a população LGBTQIA+ através da adição desses marcadores e também que promova treinamentos e capacitações obrigatórias aos operadores dos sistemas federais para que se informem e promovam a quesitação dos usuários de forma técnica e respeitosa.
Além disso, o MPF pede o pagamento de dano moral coletivo no valor de R$ 1 milhão, que será revertido em projetos educativos e informativos sobre promoção da diversidade e cultura LGBTQIA+, com enfoque nas pessoas transgênero e não binárias, elaborados com a participação direta da sociedade civil e do MPF.
Inquérito civil – A ação ocorre após a abertura de dois inquéritos civis, em 2023, para apurar os prejuízos à população LGBTQIA+ causados pelas regras atuais para cadastro de pessoas no âmbito do Governo Federal, entre elas a inclusão de campos na nova Carteira de Identidade Nacional (CIN) que discriminam a identidade de pessoas transexuais. O novo modelo da CIN já havia sido questionado pelo Grupo de Trabalho (GT) “População LGBTQIA+: proteção de direitos” da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), que editou nota técnica pontuando que a priorização do nome de registro de nascimento no documento gera situações vexatórias para pessoas transexuais, em especial aquelas que não querem ou têm dificuldades em realizar as mudanças de nome e gênero.
A nova CIN também foi alvo de protestos pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e por outras entidades em defesa de direitos LGBTQIA+, que se mobilizaram junto ao Governo Federal para exclusão dos campos discriminatórios. Em maio de 2023, a mudança foi anunciada pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, com as alterações reivindicadas pelo movimento LGBTQIA+. No entanto, em novembro, o Decreto 11.797/2023 prorrogou o prazo para que os estados e o Distrito Federal emitam o novo documento e determinou a manutenção dos campos “nome” e “nome social”, bem como o campo “sexo”.
Em um dos inquéritos, o MPF recomendou ao Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome que incluísse no CadÚnico os campos de “nome social”, “orientação sexual” e “identidade de gênero”; promovesse treinamentos e capacitações com operadores do CadÚnico e criasse mecanismos cooperativos para que os demais órgãos públicos que utilizam os dados do CadÚnico importem os marcadores “nome social”, “orientação sexual” e “identidade de gênero” para adequar formulários, sistemas registrais e bancos de dados sobre pessoas em situação de vulnerabilidade social, de modo a incluir a população LGBTQIA+. Contudo, o Ministério sequer respondeu os últimos ofícios do MPF sobre as informações atualizadas que tinha se comprometido a incluir nos sistemas.
Íntegra da Ação Civil Pública nº 1000646-09.2024.4.01.3000 – 2ª Vara Federal da SJAC
Inquérito Civil nº 1.10.000.000257/2023-64
Inquérito Civil nº 1.10.000.000987/2023-65